Eu não fizera 18 anos e meus amigos de turma eram todos maiores. Por isso, eu os acompanhava em idas aos bares, mas não podia beber (naquele tempo era assim, menores não bebiam mesmo). Certo dia, em 1964, três deles se juntaram para comprar um carro. O escolhido, entre os populares da época, vendidos apenas pela Caixa Econômica Federal, foi o TEIMOSO, versão “pelada” (e põe pelada nisso) do Renault Dauphine.
A rigor, o Teimoso só tinha a carroceria, motor, suspensão e os bancos. Do resto, absolutamente nada. O teto era direto na lataria, as portas tinham placas de madeira compensada. Ah! Câmbio tinha sim. E (ufa!) freios também.
Mas era o “nosso” carro (apesar de não participar da “vaquinha” para a compra dele, eu me considerava dono também, indo a todo lugar que a turma ia, sentados naquelas bancos horríveis. Para resumir a simplicidade do Teimoso, lembro do meu amigo Gabriel Marazzi que disse: “O Renault Teimoso era mesmo um assombro de simplicidade, algo jamais aceitável nos dias de hoje. O carro vinha sem revestimentos internos, tampa do porta-luvas, marcador de nível de combustível, calotas e reforços dos para-choques, que não eram cromados, nem pintados, assim como as molduras dos faróis. Não havia o limpador de para-brisa do lado direito, nem setas e nem lanternas traseiras, apenas uma luz vermelha no centro, que fazia as vezes de lanterna, luz de freio e luz de placa. Os bancos eram simplesmente uma armação de ferro com um tecido amarrado, como em uma cadeira de praia. Dessa forma o Renault Teimoso custava cerca da metade do valor de um Renault Gordini.
Nossa ´primeira viagem foi para Amparo (SP), onde um deles, seu tio tinha uma fazenda. E lá fomos, nós quatro enfrentar os quase 200 km de distância entre as duas cidades. Lembro que naquela época ainda não havia Rodoanel e então tivemos que enfrentar o trânsito da Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade, que à época não era tão desvairada como hoje.
Pois bem, já em Sampa, furou o primeiro pneu. Qual deles? Não lembro, mas sei que, antes de sairmos da cidade, dois outros já haviam furado. Já na estrada, duas vezes paramos para resolver os problemas causados por pneus furados. É bom lembrar que naquele tempo, não tinha SOS nas estradas e pouquíssimos postos de abastecimento. Foi um sufoco só.
Meus amigos engenheiros do setor automobilísticos, creditam à má qualidade dos pneus, estradas e ruas, o problema causado pelos furos nos pneus. Mas um mecânico afirmou que era problema no alinhamento das rodas. Eu não discuto, apenas lembro que era duro ter que pedir carona na estrada (e viva a solidariedade dos caminhoneiros!) para ir até o próximo (?!) posto, torcendo que tivesse borracheiro. Entre a ida e a volta, foram nove, as vezes que enfrentamos a furadeira dos pneus.
O curioso é que, numa viagem ao Rio de Janeiro (isso, minha turma era atrevida) ida e volta, cerca de 1000 quilômetros, não furou nenhum pneu. Será que o mecânico estava certo? Mas no rio, enfrentamos um problema diferente. Mas este era fácil de evitar, era só não pegar nenhuma ladeira, ou um de nós (claro que era eu) tinha que sair do carro porque o Teimoso teimava em não subir com a “carga total”.
Mas era muito divertido andar no Teimoso, mesmo com o seu barulho interno insuportável, em razão da total falta de isolamento acústico e do bate lata que fazia lembrar a bateria de uma escola de samba.
Foram milhares de quilômetros, com aventuras repletas de alegria e felicidade.
Éramos jovens!
Passando a direção pro Gabriel Marazzi
Daqui em diante, para os “leigos”, uma lição da história da Família Renault daquela época, contada para você seguidor aqui do AE pelo jornalista Gabriel Marazzi. Que nos conta sobre o Dauphine, Gordini, Teimoso e Renault 1093. E também fala dos outros populares, da Volkswagen, da DKW e Simca.
A história do Renault Gordini e os coadjuvantes
E do Renault Dauphine, do Renault Teimoso e do Renault 1093
Era uma vez um carrinho compacto, um pouco estranho, com linhas um tanto parecidas com as do Fusca. Até motor traseiro ele tinha. Era o Renault 4CV, produzido pela fábrica estatal de automóveis Renault desde 1947 e que foi o primeiro carro francês cujas vendas ultrapassaram a marca de um milhão de unidades.
Aqui no Brasil, importado, tinha um pequeno motor de apenas 760 cm3 de cilindrada e 17 cv potência. Agradou nas pistas, por ser leve e ágil, fácil de ser pilotado esportivamente. O motor traseiro lhe rendeu um apelido que praticamente se tornou oficial: Renault Rabo Quente.
O foco da nossa história, no entanto, não é o Rabo Quente, mas sim seu sucessor, o Renault Dauphine, lançado na França em 1956 (o 4CV foi produzido até 1961). O pequeno Dauphine (golfinho, em francês) era belo e compacto, linhas arredondadas porém bem mais modernas do que as de seu antecessor.
Para melhorar seu desempenho, o motor do 4CV teve cilindrada aumentada para 845 cm3, resultando na potência de 27 cv. Ainda assim o Dauphine era um carrinho fraco, com velocidade máxima de apenas 115 km/h. Para contornar essa situação, o engenheiro Amadeo Gordini “envenenava” o motor do Dauphine, que resultou no lançamento de uma versão mais potente, em 1958, foi chamado de Renault Dauphine Gordini.
Isso tudo aconteceu na França, sua terra natal, mas o carrinho tem, também, uma bela história no Brasil. Com a indústria brasileira de automóveis ainda dando os primeiros passos – os primeiros carros produzidos no Brasil, Romi-Isetta e DKW Universal, chegaram em 1956 –, o Renault Dauphine começou a ser fabricado em 1959 sob licença pela Willys Overland do Brasil, tornando-se um respeitável rival para o então recém-nacionalizado Volkswagen Sedan (Fusca).
Mesmo mais evoluído que o VW em relação a algumas soluções técnicas, a exemplo da carroceria monobloco, o Renault Dauphine ainda era muito fraco, com potência de apenas 26 cv (o VW tinha 30 cv e o DKW tinha 44 cv). Era fraco também em sua estrutura, uma vez que havia sido projetado para as vias europeias e sofria muito com as nossas ruas e estradas de piso demasiadamente irregulares. Nessa época, o VW Sedan de origem alemã já havia conquistado sua fama de “indestrutível”. Assim, o Renault Dauphine ganhou a alcunha de “leite Glória”. Explico: o leite em pó dessa marca chegou ao mercado com o slogan “desmancha sem bater”, em alusão à facilidade de se dissolver melhor na água do que o seu concorrente, o leite Ninho.
A resposta a esse e outros problemas na vida do Renault Dauphine foi o lançamento, em 1962, de uma versão mais potente e mais reforçada, que foi chamada aqui de Renault Gordini. O motor traseiro refrigerado a água manteve os 845 cm3 de cilindrada mas a potência passou para 32 cv (na propaganda, eram “40 HP de emoção”, certamente uma medição da potência bruta desse motor).
Suspensões e freios melhoraram no Gordini, em relação ao Dauphine, mas o melhor mesmo foi a adoção do câmbio de quatro marchas, o que deu ao novo modelo uma agilidade muito maior que a do Dauphine, que tinha câmbio de três marchas.
Em 1964 foi lançada a versão esportiva do Renault Gordini, chamada apenas de Renault 1093. Acreditava-se que esse número se referia à nova cilindrada do motor, mas na verdade era apenas um nome, referindo-se ao nome do projeto original do modelo, R1090. Com a mesma cilindrada de 845 cm3, mas com taxa de compressão aumentada de 7,7:1 para 9,2:1, carburador de corpo duplo e comando de válvulas de maior duração, a potência do Renault 1093 saltou para 42 cv, obrigando o uso de uma gasolina de maior octanagem. Naquela época, esse combustível era chamado de “gasolina azul”, porque tinha um corante para diferenciar da gasolina comum, que era amarela.
Com uma relação final um pouco mais curta, o Renault 1093 se tornou o carro oficial da Equipe Willys nas pistas, que tinha também o pequeno esportivo Interlagos. Complementando a maior esportividade do 1093, ele vinha de fábrica com um conta-giros no painel.
Um quarto modelo, com a mesma carroceria, juntou-se à família em 1964: o Renault Teimoso. Atendendo a um programa federal de incentivo, as quatro marcas de automóveis no Brasil lançaram versões extremamente espartanas de seus modelos, sem qualquer equipamento ou adereço que não fosse considerado essencial. Eliminaram cromados, forrações, chave de seta, limpador de para-brisa do lado direito e até as lanternas traseiras, no caso do Renault Teimoso.
A Simca depenou seu Chambord transformando-o em Profissional (em 1962 já havia sido comercializada uma versão parecida, o Simca Alvorada). A DKW-Vemag arrancou tudo da perua Vemaguet e chamou-a de Pracinha (em 1962 eles fizeram a perua DKW Caiçara, similar). E a Volkswagen criou o seu famoso Pé-de-boi, versão “pelada” do Sedan. A Renault ficou com o Teimoso.
O nome Teimoso foi inspirado em um teste feito pelo fabricante no Autódromo de Interlagos, com um Gordini sendo pilotado pelos principais e mais famosos pilotos de competição da época, a maioria pertencente à Equipe Willys, capitaneada por Luiz Antônio Greco. Sempre presente na parte técnica da equipe estava o mecânico Nelson Brizzi, também responsável pelo grande sucesso da equipe nas competições.
O Renault Gordini rodou sem descanso, parando apenas para abastecimento, calibragem de pneus e troca de pilotos. Nem mesmo uma capotagem na curva 3 (no volante, meu ídolo maior, Bird Clemente) fez o carrinho parar, o que originou o nome da versão popular do modelo. O Renault Gordini completou os 50 mil quilômetros propostos 22 dias depois, batendo múltiplos recordes oficiais de distância e tempo. A ideia deste super teste foi do publicitário Mauro Salles, cuja agência tinha a conta da Willys.
Em 1966 foi lançado o Renault Gordini II, com algumas inovações mecânicas no motor e na suspensão traseira. Em 1967, foi a vez do Renault Gordini III, que tinha um item opcional de altíssimo prestígio: os freios dianteiros a disco. Visto de trás, o Gordini III podia ser reconhecido pelas lanternas retangulares, o que deu ao carrinho uma aparência bem mais moderna.
O último ano do modelo foi 1968, com o Renault Gordini IV. Foi também quando a Ford comprou a Willys e herdou o Projeto M, que seria o sucessor do Gordini. Esse Renault, então, se transformou no Ford Corcel, lançado em 1968.