O DIA EM QUE ROUBAMOS UM BONDE

Eram tempos diferentes, sem celulares, nem mesmo orelhões de rua. Tempos em que andávamos de bonde, Fusca, Gordini, DKWs, assistíamos TV Admiral em preto e branco e dançávamos ao som da Sonata nos bailinhos de garagem na casa dos meus amigos Orival e Maneco. Tempos de loucuras juvenis.

Por isso roubamos um bonde, numa quase madrugada, lá pelos anos 60. Não me lembro quem estava comigo, mas tenho certeza que o Maneco e o Orival não participaram dessa.

Bonde era uma coisa maravilhosa de se andar. Tinha aberto e fechado, o Camarão, que roubamos na Ponta da Praia.

Saímos do Regatas Santista, que tinha um belo salão de festas. Era um baile de formatura, daqueles sensacionais, com grandes orquestras, como a de Silvio Mazuca, Dick Farney (que sempre dava uma canja, cantando, se acompanhando ao piano, nos intervalos fazendo as moças derreterem de emoção com sua voz de veludo), e a do Simonetti, entre dezenas de outras.

Qual era a daquela noite? não lembro.

Na lembrança, só que quase todo jovem, apesar do calor sufocante – todos estes bailes aconteciam sempre no verão santista – se vestia de terno preto, camisa Volta ao Mundo (a primeira de tecido sintético,que não absorvia a transpiração e causava sérios problemas posteriores), sapatos Bibo (terrivelmente apertados no bico), de cromo alemão. Mas por que usávamos essas coisas horríveis? Era a moda! Simples assim!

Por seu lado, muitas moças usavam um negócio chamado laquê (hoje virou só spray) para dar firmeza no penteado, que também ganhava volume com Bombril, colocado no meio dos cabelos. Era quase impossível colar o rosto com aquele odor horrível do tal  do laquê.

Mas sempre valia ir aos bailes, cujos convites eram muito disputados e frequentados por moças bonitas, mesmo que “laqueadas”.

E o roubo do bonde?

Bem, antes do baile acabar, nossa turma resolveu ir embora, pra pegar o último bonde, que nos deixaria na esquina do Canal 1. Em Santos, existem nove canais que conectam a praia ao cais, construídos pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito. Ele os criou para sanar um sério problema de higiene que quase dizimou a população da cidade, que perdeu 22 mil dos 50 mil habitantes, entre 1890 e 1899.

Era, salvo engano da memória, o bonde 2, que estava parado na rotatória, esperando a hora de sair, com destino a São Vicente.

Entramos no veículo e vi que o motorneiro (o “motorista”),  que estava sentado do lado de fora, junto com seu colega, o cobrador, havia esquecido de retirar a chave de ignição (não era este o nome, mas …).

– Olha, o motorneiro não tirou a chave!

– Vamos levar? Foi a sugestão imediatamente aceita pelo grupo.

E lá fomos nós, a “8 pontos”, com os dois correndo desesperados, e inutilmente, atrás do bonde.

Trocamos de “motorneiro” por várias vezes, até chegar perto da Igreja do Embaré.

Ih! A polícia vem ai!

Paramos no ponto e saímos, devagar, sem correrias, como se fossemos passageiros normais, saindo cada um para um lado. Não podíamos dar bandeira, né?

Mas o susto não passou mesmo de um susto. O Fusca preto e branco da Polícia, com sua única e minúscula luz vermelha e uma sirene desafinada, passou sem que seus ocupantes sequer olhasse para o nosso lado.

Mas, como eu disse lá no começo do texto, eram outros tempos, sem celulares, nem mesmo orelhões.

E cada um seguiu para sua casa, tranquilamente sem nos dias seguintes comentar a história nas rodas da turma, com medo de dar encrenca.

Mas com o orgulho do feito: roubamos um bonde.

Só conto esta história porque o crime já prescreveu (deve fazer uns 55 anos), conforme me garantiu um amigo advogado.

Tomara o dr. Marcos esteja certo.

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